resultados
Publicado
© “Maria Noémia do Amaral Coutinho, CODA 304, pd. 11 (CDUA FAUP)”
https://hdl.handle.net/10405/48256
Embora a profissão de arquitecto ainda enfrente desafios significativos em relação à diversidade de género, há esperança de que a equidade de género se torne uma realidade cada vez mais presente nesta área, permitindo que mulheres arquitectas sejam verdadeiramente reconhecidas pelo seu trabalho e dedicação a tão nobre arte. Comparativamente, a menor remuneração, a falta de promoção e exclusão de oportunidades de liderança são efectivamente factores de reflexão e consequentemente desafios que aumentam de complexidade quando confrontados com a conciliação da vida profissional e familiar.
Há mais de 50 anos, as noções sociais eram uma barreira acrescida, e se o trabalho de uma arquitecta já era desvalorizado, isso era ainda mais notório quando era feito por conta de outrem num gabinete de arquitectura.
Exemplo paradigmático do confronto com esta realidade é o percurso de Maria Noémia Mourão do Amaral Coutinho nascida em 1937. Noémia Coutinho ingressa no curso de Arquitectura da Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP) em 1955, numa ocasião em que a frequência daquele era ainda essencialmente masculina.
© Arquivo pedro novo arquitectos
Com efeito, poucas foram as alunas do curso de arquitectura anteriores a Noémia Coutinho. As jovens alunas da ESBAP assumiam frequentemente a preferência pelo curso de pintura, frequentado há várias décadas por destacadas artistas portuenses, como Sofia e Aurélia de Sousa, entre outras. Esta escolha dever-se-ia em parte à conotação social dos diferentes ofícios, encontrando o da pintura uma maior aceitação dentro dos conservadores costumes portugueses. A nível profissional, este contexto levará muitas das alunas do curso de pintura da ESBAP a seguir o caminho do ensino como professoras de desenho, sendo o curso de arquitectura menos adequado a estes propósitos. Esta situação muda sobretudo após a passagem pelo curso de arquitectura da ESBAP de Maria José Marques da Silva, filha do arquitecto e professor José Marques da Silva, que o frequenta a partir de 1933, sendo esta a primeira mulher a defender uma prova de CODA nesta escola portuense em 1943. Por essa altura frequentavam já o curso outras alunas, mas poucas eram aquelas que o completavam. Entre estas últimas encontram-se as irmãs Helena e Stela Sant’Ana e ainda Maria Carlota Quintanilha, as quais iniciaram os seus cursos durante as décadas de 1930 e 1940. Maria José Marques da Silva desenvolve exclusivamente actividade profissional como arquitecta junto do seu marido, David Moreira da Silva. As irmãs Sant’Ana tomam como várias colegas suas do curso de pintura o caminho do ensino, realizando algumas obras enquanto arquitectas. Por sua vez, Maria Carlota Quintanilha trabalhará como arquitecta junto do seu marido, João José Tinoco, como também enquanto professora.
Noémia Coutinho tomará os caminhos do ofício da arquitectura de forma distinta das suas colegas mais velhas. Trabalhou inicialmente com Alfredo Viana de Lima e mais tarde no gabinete de José Carlos Loureiro e Luís Pádua Ramos, sendo neste último que desenvolve a maior parte da sua actividade.
Ao contrário de outros escritórios de arquitectura do Porto, o gabinete Loureiro-Pádua estava estruturado segundo um modelo de trabalho no qual os vários colaboradores beneficiavam de alguma liberdade e independência. Os projectos podiam ser desenvolvidos pelos colaboradores, mas tinham de ter a aprovação interna de José Carlos Loureiro ou de Luís Pádua Ramos. Além disso, alguns dos elementos que compunham cada projecto tinham de seguir os modelos pré-estabelecidos dentro do gabinete, tal como sucedia, por exemplo, com os cadernos de encargos.
O conjunto residencial do Luso é um dos primeiros projectos no qual este sistema é aplicado, certamente devido à quantidade de trabalho necessário para o seu desenvolvimento. Assim, a partir do projecto inicial elaborado por José Carlos Loureiro, o trabalho a desenvolver para os vários edifícios que compõem este conjunto residencial será distribuído pelos principais arquitectos que trabalham no gabinete. Todas as propostas elaboradas por estes arquitectos são coordenadas por José Carlos Loureiro que não só define os critérios que as congregam entre si, como também realiza diversas alterações às mesmas no mesmo sentido, cabendo-lhe, por exemplo, a definição dos modelos das janelas verticais e das fachadas azulejadas.
Esta solução de trabalho evolui ao longo da década de 1960 no sentido de uma maior liberdade projectual dos vários arquitectos, aproximando-se do sistema empresarial observado, por exemplo, no gabinete técnico da Hidroeléctrica do Douro, no qual Rogério Ramos, Manuel Nunes de Almeida e João Archer de Carvalho desenvolviam separadamente os vários projectos, mas trabalhavam colectivamente, colaborando mutuamente na sua elaboração.
Serão vários os projectos elaborados segundo este sistema, sobretudo na década de 1960.
É neste contexto que Noémia Coutinho fica encarregada da elaboração do projecto para o Conservatório Regional de Música Calouste Gulbenkian em Aveiro, o qual apresentará como prova de CODA em 1966.
Enquanto edifício institucional, cultural e de ensino, o Conservatório de Aveiro assume um programa complexo que implica necessários cuidados no domínio da escala, da volumetria, da expressão urbana, entre outros. Como forma de resolução destas condicionantes,
o programa é disposto num conjunto de volumes fragmentados que se organizam em torno de um pátio rectangular, de um claustro e de um anfiteatro ao ar livre. Esta solução arquitectónica deve muito às novas correntes arquitectónicas então em voga na Europa e em Portugal, as quais propunham uma nova perpectiva sobre a arquitectura moderna na qual os valores da arquitectura tradicional assumem grande relevância. Em Portugal, esta nova perspectiva assumia corpo em obras de arquitectos como Nuno Teotónio Pereira, Victor Palla e Bento d’Almeida, Fernando Távora, João Andresen, Octávio Lixa Filgueiras e, naturalmente, José Carlos Loureiro e Pádua Ramos. Noémia Coutinho, pela sua proximidade a muitos destes arquitectos, expressa os valores dessa nova perspectiva arquitectónica no projecto do Conservatório de Aveiro, conciliando o betão aparente com materiais e com motivos da arquitectura tradicional. Como tal, a fragmentação volumétrica traduz-se num complexo jogo de coberturas em telha, numa fenestração dinâmica e em trabalhos de carpintaria mais ou menos complexos, elementos de projecto que participam no processo de articulação do grande anfiteatro com as restantes componentes do programa, de dimensão mais reduzida.
Devido a esta anatomia geral, o edifício do Conservatório de Aveiro enquadra-se na sequência de outros projectos do gabinete Loureiro-Pádua, como a Casa Júlio Resende em Gondomar (1961), a Escola Primária da Glória em Aveiro (1964-67) ou a Estalagem Zende em Esposende (1965-72), mas também com outras coevas destas, tais como a Igreja do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa, de Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas (1961-1970), e o Convento das Irmãs Franciscanas de Calais em Gondomar, de Fernando Távora (1961-71).
Tal como outras obras do gabinete Loureiro-Pádua, o Conservatório de Aveiro reflecte preocupações comuns à produção arquitectónica deste escritório, situação que se reflecte em elementos como o caderno de encargos, o qual segue o modelo comum a trabalhos ali anteriormente executados, recebendo este projecto, tal como os restantes do gabinete, a chancela final de José Carlos Loureiro e Luís Pádua Ramos.
Noémia Coutinho prosseguirá a sua actividade dentro do gabinete Loureiro-Pádua após a apresentação da sua prova de CODA. Participou em obras como as do Mercado de Barcelos (cujo pátio apresenta semelhanças várias para com o claustro do Conservatório de Aveiro), do edifício do Banco Nacional Ultramarino em Braga, do Banco Borges & Irmão na Rua Infante D. Henrique no Porto, ou do Hotel Solverde na Granja, sempre colaborando de perto com José Carlos Loureiro e Luís Pádua Ramos.
Dedicou sempre especial atenção, por exemplo, ao uso da cor, à relação com as pré-existências e à integração dos novos edifícios na cidade, num contexto de época marcado pela rápida volatilização da arquitectura corrente de matriz oitocentista.
Noémia Coutinho foi sem dúvida uma arquitecta de destaque na sua época com um percurso diferenciado e disruptivo dentro dos costumes conservadores da sua geração. A singularidade do seu percurso enquanto uma das primeiras mulheres licenciadas em Arquitectura, assim como os seus contributos no ensino da Arquitectura, permitem reconhecer hoje, a par com a sua obra construída, a importância do seu trabalho. Um percurso que deverá ser valorizado e reconhecido enquanto um importante e significativo legado na história da arquitectura em Portugal.
Texto escrito por : Pedro Novo e José Pedro Tenreiro
Publicado
© “Maria Noémia do Amaral Coutinho, CODA 304, pd. 11 (CDUA FAUP)”
https://hdl.handle.net/10405/48256
Embora a profissão de arquitecto ainda enfrente desafios significativos em relação à diversidade de género, há esperança de que a equidade de género se torne uma realidade cada vez mais presente nesta área, permitindo que mulheres arquitectas sejam verdadeiramente reconhecidas pelo seu trabalho e dedicação a tão nobre arte. Comparativamente, a menor remuneração, a falta de promoção e exclusão de oportunidades de liderança são efectivamente factores de reflexão e consequentemente desafios que aumentam de complexidade quando confrontados com a conciliação da vida profissional e familiar.
Há mais de 50 anos, as noções sociais eram uma barreira acrescida, e se o trabalho de uma arquitecta já era desvalorizado, isso era ainda mais notório quando era feito por conta de outrem num gabinete de arquitectura.
Exemplo paradigmático do confronto com esta realidade é o percurso de Maria Noémia Mourão do Amaral Coutinho nascida em 1937. Noémia Coutinho ingressa no curso de Arquitectura da Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP) em 1955, numa ocasião em que a frequência daquele era ainda essencialmente masculina.
© Arquivo pedro novo arquitectos
Com efeito, poucas foram as alunas do curso de arquitectura anteriores a Noémia Coutinho. As jovens alunas da ESBAP assumiam frequentemente a preferência pelo curso de pintura, frequentado há várias décadas por destacadas artistas portuenses, como Sofia e Aurélia de Sousa, entre outras. Esta escolha dever-se-ia em parte à conotação social dos diferentes ofícios, encontrando o da pintura uma maior aceitação dentro dos conservadores costumes portugueses. A nível profissional, este contexto levará muitas das alunas do curso de pintura da ESBAP a seguir o caminho do ensino como professoras de desenho, sendo o curso de arquitectura menos adequado a estes propósitos. Esta situação muda sobretudo após a passagem pelo curso de arquitectura da ESBAP de Maria José Marques da Silva, filha do arquitecto e professor José Marques da Silva, que o frequenta a partir de 1933, sendo esta a primeira mulher a defender uma prova de CODA nesta escola portuense em 1943. Por essa altura frequentavam já o curso outras alunas, mas poucas eram aquelas que o completavam. Entre estas últimas encontram-se as irmãs Helena e Stela Sant’Ana e ainda Maria Carlota Quintanilha, as quais iniciaram os seus cursos durante as décadas de 1930 e 1940. Maria José Marques da Silva desenvolve exclusivamente actividade profissional como arquitecta junto do seu marido, David Moreira da Silva. As irmãs Sant’Ana tomam como várias colegas suas do curso de pintura o caminho do ensino, realizando algumas obras enquanto arquitectas. Por sua vez, Maria Carlota Quintanilha trabalhará como arquitecta junto do seu marido, João José Tinoco, como também enquanto professora.
Noémia Coutinho tomará os caminhos do ofício da arquitectura de forma distinta das suas colegas mais velhas. Trabalhou inicialmente com Alfredo Viana de Lima e mais tarde no gabinete de José Carlos Loureiro e Luís Pádua Ramos, sendo neste último que desenvolve a maior parte da sua actividade.
Ao contrário de outros escritórios de arquitectura do Porto, o gabinete Loureiro-Pádua estava estruturado segundo um modelo de trabalho no qual os vários colaboradores beneficiavam de alguma liberdade e independência. Os projectos podiam ser desenvolvidos pelos colaboradores, mas tinham de ter a aprovação interna de José Carlos Loureiro ou de Luís Pádua Ramos. Além disso, alguns dos elementos que compunham cada projecto tinham de seguir os modelos pré-estabelecidos dentro do gabinete, tal como sucedia, por exemplo, com os cadernos de encargos.
O conjunto residencial do Luso é um dos primeiros projectos no qual este sistema é aplicado, certamente devido à quantidade de trabalho necessário para o seu desenvolvimento. Assim, a partir do projecto inicial elaborado por José Carlos Loureiro, o trabalho a desenvolver para os vários edifícios que compõem este conjunto residencial será distribuído pelos principais arquitectos que trabalham no gabinete. Todas as propostas elaboradas por estes arquitectos são coordenadas por José Carlos Loureiro que não só define os critérios que as congregam entre si, como também realiza diversas alterações às mesmas no mesmo sentido, cabendo-lhe, por exemplo, a definição dos modelos das janelas verticais e das fachadas azulejadas.
Esta solução de trabalho evolui ao longo da década de 1960 no sentido de uma maior liberdade projectual dos vários arquitectos, aproximando-se do sistema empresarial observado, por exemplo, no gabinete técnico da Hidroeléctrica do Douro, no qual Rogério Ramos, Manuel Nunes de Almeida e João Archer de Carvalho desenvolviam separadamente os vários projectos, mas trabalhavam colectivamente, colaborando mutuamente na sua elaboração.
Serão vários os projectos elaborados segundo este sistema, sobretudo na década de 1960.
É neste contexto que Noémia Coutinho fica encarregada da elaboração do projecto para o Conservatório Regional de Música Calouste Gulbenkian em Aveiro, o qual apresentará como prova de CODA em 1966.
Enquanto edifício institucional, cultural e de ensino, o Conservatório de Aveiro assume um programa complexo que implica necessários cuidados no domínio da escala, da volumetria, da expressão urbana, entre outros. Como forma de resolução destas condicionantes,
o programa é disposto num conjunto de volumes fragmentados que se organizam em torno de um pátio rectangular, de um claustro e de um anfiteatro ao ar livre. Esta solução arquitectónica deve muito às novas correntes arquitectónicas então em voga na Europa e em Portugal, as quais propunham uma nova perpectiva sobre a arquitectura moderna na qual os valores da arquitectura tradicional assumem grande relevância. Em Portugal, esta nova perspectiva assumia corpo em obras de arquitectos como Nuno Teotónio Pereira, Victor Palla e Bento d’Almeida, Fernando Távora, João Andresen, Octávio Lixa Filgueiras e, naturalmente, José Carlos Loureiro e Pádua Ramos. Noémia Coutinho, pela sua proximidade a muitos destes arquitectos, expressa os valores dessa nova perspectiva arquitectónica no projecto do Conservatório de Aveiro, conciliando o betão aparente com materiais e com motivos da arquitectura tradicional. Como tal, a fragmentação volumétrica traduz-se num complexo jogo de coberturas em telha, numa fenestração dinâmica e em trabalhos de carpintaria mais ou menos complexos, elementos de projecto que participam no processo de articulação do grande anfiteatro com as restantes componentes do programa, de dimensão mais reduzida.
Devido a esta anatomia geral, o edifício do Conservatório de Aveiro enquadra-se na sequência de outros projectos do gabinete Loureiro-Pádua, como a Casa Júlio Resende em Gondomar (1961), a Escola Primária da Glória em Aveiro (1964-67) ou a Estalagem Zende em Esposende (1965-72), mas também com outras coevas destas, tais como a Igreja do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa, de Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas (1961-1970), e o Convento das Irmãs Franciscanas de Calais em Gondomar, de Fernando Távora (1961-71).
Tal como outras obras do gabinete Loureiro-Pádua, o Conservatório de Aveiro reflecte preocupações comuns à produção arquitectónica deste escritório, situação que se reflecte em elementos como o caderno de encargos, o qual segue o modelo comum a trabalhos ali anteriormente executados, recebendo este projecto, tal como os restantes do gabinete, a chancela final de José Carlos Loureiro e Luís Pádua Ramos.
Noémia Coutinho prosseguirá a sua actividade dentro do gabinete Loureiro-Pádua após a apresentação da sua prova de CODA. Participou em obras como as do Mercado de Barcelos (cujo pátio apresenta semelhanças várias para com o claustro do Conservatório de Aveiro), do edifício do Banco Nacional Ultramarino em Braga, do Banco Borges & Irmão na Rua Infante D. Henrique no Porto, ou do Hotel Solverde na Granja, sempre colaborando de perto com José Carlos Loureiro e Luís Pádua Ramos.
Dedicou sempre especial atenção, por exemplo, ao uso da cor, à relação com as pré-existências e à integração dos novos edifícios na cidade, num contexto de época marcado pela rápida volatilização da arquitectura corrente de matriz oitocentista.
Noémia Coutinho foi sem dúvida uma arquitecta de destaque na sua época com um percurso diferenciado e disruptivo dentro dos costumes conservadores da sua geração. A singularidade do seu percurso enquanto uma das primeiras mulheres licenciadas em Arquitectura, assim como os seus contributos no ensino da Arquitectura, permitem reconhecer hoje, a par com a sua obra construída, a importância do seu trabalho. Um percurso que deverá ser valorizado e reconhecido enquanto um importante e significativo legado na história da arquitectura em Portugal.
Texto escrito por : Pedro Novo e José Pedro Tenreiro
Publicado
© “Maria Noémia do Amaral Coutinho, CODA 304, pd. 11 (CDUA FAUP)”
https://hdl.handle.net/10405/48256
Embora a profissão de arquitecto ainda enfrente desafios significativos em relação à diversidade de género, há esperança de que a equidade de género se torne uma realidade cada vez mais presente nesta área, permitindo que mulheres arquitectas sejam verdadeiramente reconhecidas pelo seu trabalho e dedicação a tão nobre arte. Comparativamente, a menor remuneração, a falta de promoção e exclusão de oportunidades de liderança são efectivamente factores de reflexão e consequentemente desafios que aumentam de complexidade quando confrontados com a conciliação da vida profissional e familiar.
Há mais de 50 anos, as noções sociais eram uma barreira acrescida, e se o trabalho de uma arquitecta já era desvalorizado, isso era ainda mais notório quando era feito por conta de outrem num gabinete de arquitectura.
Exemplo paradigmático do confronto com esta realidade é o percurso de Maria Noémia Mourão do Amaral Coutinho nascida em 1937. Noémia Coutinho ingressa no curso de Arquitectura da Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP) em 1955, numa ocasião em que a frequência daquele era ainda essencialmente masculina.
© Arquivo pedro novo arquitectos
Com efeito, poucas foram as alunas do curso de arquitectura anteriores a Noémia Coutinho. As jovens alunas da ESBAP assumiam frequentemente a preferência pelo curso de pintura, frequentado há várias décadas por destacadas artistas portuenses, como Sofia e Aurélia de Sousa, entre outras. Esta escolha dever-se-ia em parte à conotação social dos diferentes ofícios, encontrando o da pintura uma maior aceitação dentro dos conservadores costumes portugueses. A nível profissional, este contexto levará muitas das alunas do curso de pintura da ESBAP a seguir o caminho do ensino como professoras de desenho, sendo o curso de arquitectura menos adequado a estes propósitos. Esta situação muda sobretudo após a passagem pelo curso de arquitectura da ESBAP de Maria José Marques da Silva, filha do arquitecto e professor José Marques da Silva, que o frequenta a partir de 1933, sendo esta a primeira mulher a defender uma prova de CODA nesta escola portuense em 1943. Por essa altura frequentavam já o curso outras alunas, mas poucas eram aquelas que o completavam. Entre estas últimas encontram-se as irmãs Helena e Stela Sant’Ana e ainda Maria Carlota Quintanilha, as quais iniciaram os seus cursos durante as décadas de 1930 e 1940. Maria José Marques da Silva desenvolve exclusivamente actividade profissional como arquitecta junto do seu marido, David Moreira da Silva. As irmãs Sant’Ana tomam como várias colegas suas do curso de pintura o caminho do ensino, realizando algumas obras enquanto arquitectas. Por sua vez, Maria Carlota Quintanilha trabalhará como arquitecta junto do seu marido, João José Tinoco, como também enquanto professora.
Noémia Coutinho tomará os caminhos do ofício da arquitectura de forma distinta das suas colegas mais velhas. Trabalhou inicialmente com Alfredo Viana de Lima e mais tarde no gabinete de José Carlos Loureiro e Luís Pádua Ramos, sendo neste último que desenvolve a maior parte da sua actividade.
Ao contrário de outros escritórios de arquitectura do Porto, o gabinete Loureiro-Pádua estava estruturado segundo um modelo de trabalho no qual os vários colaboradores beneficiavam de alguma liberdade e independência. Os projectos podiam ser desenvolvidos pelos colaboradores, mas tinham de ter a aprovação interna de José Carlos Loureiro ou de Luís Pádua Ramos. Além disso, alguns dos elementos que compunham cada projecto tinham de seguir os modelos pré-estabelecidos dentro do gabinete, tal como sucedia, por exemplo, com os cadernos de encargos.
O conjunto residencial do Luso é um dos primeiros projectos no qual este sistema é aplicado, certamente devido à quantidade de trabalho necessário para o seu desenvolvimento. Assim, a partir do projecto inicial elaborado por José Carlos Loureiro, o trabalho a desenvolver para os vários edifícios que compõem este conjunto residencial será distribuído pelos principais arquitectos que trabalham no gabinete. Todas as propostas elaboradas por estes arquitectos são coordenadas por José Carlos Loureiro que não só define os critérios que as congregam entre si, como também realiza diversas alterações às mesmas no mesmo sentido, cabendo-lhe, por exemplo, a definição dos modelos das janelas verticais e das fachadas azulejadas.
Esta solução de trabalho evolui ao longo da década de 1960 no sentido de uma maior liberdade projectual dos vários arquitectos, aproximando-se do sistema empresarial observado, por exemplo, no gabinete técnico da Hidroeléctrica do Douro, no qual Rogério Ramos, Manuel Nunes de Almeida e João Archer de Carvalho desenvolviam separadamente os vários projectos, mas trabalhavam colectivamente, colaborando mutuamente na sua elaboração.
Serão vários os projectos elaborados segundo este sistema, sobretudo na década de 1960.
É neste contexto que Noémia Coutinho fica encarregada da elaboração do projecto para o Conservatório Regional de Música Calouste Gulbenkian em Aveiro, o qual apresentará como prova de CODA em 1966.
Enquanto edifício institucional, cultural e de ensino, o Conservatório de Aveiro assume um programa complexo que implica necessários cuidados no domínio da escala, da volumetria, da expressão urbana, entre outros. Como forma de resolução destas condicionantes,
o programa é disposto num conjunto de volumes fragmentados que se organizam em torno de um pátio rectangular, de um claustro e de um anfiteatro ao ar livre. Esta solução arquitectónica deve muito às novas correntes arquitectónicas então em voga na Europa e em Portugal, as quais propunham uma nova perpectiva sobre a arquitectura moderna na qual os valores da arquitectura tradicional assumem grande relevância. Em Portugal, esta nova perspectiva assumia corpo em obras de arquitectos como Nuno Teotónio Pereira, Victor Palla e Bento d’Almeida, Fernando Távora, João Andresen, Octávio Lixa Filgueiras e, naturalmente, José Carlos Loureiro e Pádua Ramos. Noémia Coutinho, pela sua proximidade a muitos destes arquitectos, expressa os valores dessa nova perspectiva arquitectónica no projecto do Conservatório de Aveiro, conciliando o betão aparente com materiais e com motivos da arquitectura tradicional. Como tal, a fragmentação volumétrica traduz-se num complexo jogo de coberturas em telha, numa fenestração dinâmica e em trabalhos de carpintaria mais ou menos complexos, elementos de projecto que participam no processo de articulação do grande anfiteatro com as restantes componentes do programa, de dimensão mais reduzida.
Devido a esta anatomia geral, o edifício do Conservatório de Aveiro enquadra-se na sequência de outros projectos do gabinete Loureiro-Pádua, como a Casa Júlio Resende em Gondomar (1961), a Escola Primária da Glória em Aveiro (1964-67) ou a Estalagem Zende em Esposende (1965-72), mas também com outras coevas destas, tais como a Igreja do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa, de Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas (1961-1970), e o Convento das Irmãs Franciscanas de Calais em Gondomar, de Fernando Távora (1961-71).
Tal como outras obras do gabinete Loureiro-Pádua, o Conservatório de Aveiro reflecte preocupações comuns à produção arquitectónica deste escritório, situação que se reflecte em elementos como o caderno de encargos, o qual segue o modelo comum a trabalhos ali anteriormente executados, recebendo este projecto, tal como os restantes do gabinete, a chancela final de José Carlos Loureiro e Luís Pádua Ramos.
Noémia Coutinho prosseguirá a sua actividade dentro do gabinete Loureiro-Pádua após a apresentação da sua prova de CODA. Participou em obras como as do Mercado de Barcelos (cujo pátio apresenta semelhanças várias para com o claustro do Conservatório de Aveiro), do edifício do Banco Nacional Ultramarino em Braga, do Banco Borges & Irmão na Rua Infante D. Henrique no Porto, ou do Hotel Solverde na Granja, sempre colaborando de perto com José Carlos Loureiro e Luís Pádua Ramos.
Dedicou sempre especial atenção, por exemplo, ao uso da cor, à relação com as pré-existências e à integração dos novos edifícios na cidade, num contexto de época marcado pela rápida volatilização da arquitectura corrente de matriz oitocentista.
Noémia Coutinho foi sem dúvida uma arquitecta de destaque na sua época com um percurso diferenciado e disruptivo dentro dos costumes conservadores da sua geração. A singularidade do seu percurso enquanto uma das primeiras mulheres licenciadas em Arquitectura, assim como os seus contributos no ensino da Arquitectura, permitem reconhecer hoje, a par com a sua obra construída, a importância do seu trabalho. Um percurso que deverá ser valorizado e reconhecido enquanto um importante e significativo legado na história da arquitectura em Portugal.
Texto escrito por : Pedro Novo e José Pedro Tenreiro